A Dimensão Social e Receptiva do Processo de Leitura: Uma Concepção Interacionista
Dioni Maria dos Santos Paz
Este artigo objetiva enfocar a leitura como algo dialético e dinâmico, capaz de descrever como funciona a interatividade entre o professor, o aluno e o meio. A fundamentação teórica está firmada em Luria (1990), Vygotsky (1994) e Richter (2000), que argumentam ser a interação uma forma de tornar o conhecimento socialmente construído. Da mesma forma, procurar-se-á mostrar como o processo do método recepcional de leitura, defendido por Bordini e Aguiar (1988), poderá ser praticado em sala de aula, transformando o ato de ler em um produto de investigação e interação com o meio social.
1. Considerações Iniciais
Todos sabem que uma das preocupações dos professores de línguas e literaturas, além de “o que ler”, está em “como ler“. O que é preciso fazer é confrontar essa discussão com as preocupações de ordem prática no ensino da leitura. Para isso, é necessário um exame de uma série de procedimentos comumente empregados por professores e produtores de materiais didáticos. Além do mais, deve haver maneiras pelas quais os materiais e procedimentos poderiam ser modificados ou ampliados para desenvolverem as capacidades comunicativas, Conseqüentemente, é importante reconhecer que o ensino da leitura é uma atividade tanto teórica quanto prática, que materiais de ensino e procedimentos de sala de aula eficazes dependem de princípios derivados de uma compreensão do que é leitura e quais as implicações relacionadas à natureza e à competência do usuário de textos.
2. Leitura e Interatividade
A teoria interacionista defende que a aquisição da linguagem provém da interação do programa mental do aprendiz com a linguagem realizada pelo aprendiz e um interlocutor. Além disso, argumenta que a aprendizagem de uma língua encontra suas raízes em um sistema de reciprocidade comportamental, isto é, o aprendiz precisa comportar-se socialmente, dando sentido às suas ações. Sabemos que é difícil ser absolutamente preciso sobre os fatores que envolvem a leitura, mas defendemos que uma proposta interativa poderá dar orientação para se alcançar determinados fins como resolver problemas, lembrar de informações e aplicar conhecimentos.
“O interacionismo põe sua ênfase na necessidade de os alunos manterem interação conversacional para, com isso, terem acesso a “input” significativo e compreensivo. Essas interações levam à negociação de sentido: expressar e esclarecer intenções, pensamentos, opiniões, etc.” (Richter,2000:78)
Com essa colocação fica clara a ênfase no trabalho coletivo. A negociação entre os sujeitos acontece de forma autêntica, articulando sentimentos e reflexões. Nesse intercâmbio o professor interage com o aluno utilizando recursos como esclarecimento, confirmação, questionamento e contestação. Concordando com Richter, temos o seguinte depoimento:
“Quaisquer mal-entendidos que ocorram podem ser esclarecidos no processo da interação, e os participantes se apóiam no “retorno” oferecido pelas reações dos outros interlocutores”. (Widdowson, 1991:93)
Nota-se que essa prática interacionista é de grande importância no processo da leitura que se diz receptiva, uma vez que pode clarificar e modificar o sentido de um texto dependendo de como ele é recebido. Trocar experiências de mundo é uma maneira de manobra tática e deve ser analisada como um modo explícito de interação.
Para Freire (1983), é a partir do momento em que o homem reflete criticamente sobre sua realidade e confronta-se com ela, que ele constrói a si mesmo e chega a ser sujeito. Na medida em que o homem, integrado em seu contexto, reflete sobre esse contexto e se compromete, ele passa a ser dono do seu universo. Então, a fim de que o homem possa participar ativamente do seu contexto sócio-histórico e da transformação da realidade, é necessário que ele tome consciência dessa realidade e consiga refletir criticamente sobre ele e o mundo.
São autores como os vistos acima que, ao pensarem na linguagem, no homem e na sociedade de forma totalizante e concreta, possibilitam um redimensionamento nas estruturas metodológicas do ato de ler. Aqui se encontra o método recepcional de leitura.
3. Como Interagir com o Método Recepcional da Leitura?
“O caráter iluminista dessa teoria, que no fundo pretende investir a leitura de uma forma revolucionária, capaz de afetar a história, insiste na qualificação dos leitores pela interação ativa com os textos e a sociedade.” (Bordini e Aguiar, 1988:85).
Oferecendo informações atualizadas, esta proposta de aplicação do método recepcional mesclada com a visão interacionista da linguagem leva sob mira o contexto do dia-a-dia das dificuldades dos leitores em assimilar textos chamados difíceis e fazer uma boa leitura. Ao mesmo tempo, o método da recepção procura desmistificar o texto literário, retirando-o do distanciamento em que costumam colocá-lo.
De acordo com Bordini e Aguiar, primeiramente deve-se escolher um tema a ser discutido. Para exemplificação, escolheu-se “a escola” como tema. Partiríamos solicitando aos alunos para que assistissem, em casa, ao programa Zorra Total, antiga Escolinha do professor Raimundo na Tv Globo, ou optaríamos por gravar dois ou três programas e apresentá-los em sala de aula. Com esse primeiro texto, os alunos devem fazer anotações sobre o comportamento dos principais personagens, sobre as perguntas e respostas, atitudes individuais e grupais. De posse da primeira leitura, um dos pontos que pode ser explorado é a desvalorização da educação. Os leitores devem perceber que a televisão aborda o assunto de forma humorística mas crítica, salientando o baixo nível cultural e os diferentes tipos de alunos. Devem ser analisados os personagens mais expressivos, por exemplo, o Seu Boneco que vai à aula apenas por causa da merenda, e que esta é a realidade de muitas crianças que precisam se alimentar. Outro personagem poderia ser o Seu Rolando Nero,que nunca entende a pergunta do professor e responde outra coisa qualquer, ficando evidente que é um aluno despreparado. Podem ser lidas as figuras femininas com suas qualidades de beleza, mas burrinhas, mostrando o lado machista do quadro. Enfim, o objetivo maior é tornar a leitura agradável e bem acolhida. Essa é a primeira etapa, que atenderia ao “horizonte de expectativas“ dos alunos, por isso não deve haver estranhamentos.
Passemos, então, para a segunda leitura. Sugere-se “Sociedade dos poetas mortos” . Devemos atentar para o fato de que os alunos devem estar no ensino médio. Isso quer dizer que dominam um tipo de conhecimento prévio em história e literatura. Essa etapa exige o conhecimento da época do Romantismo, remetendo os alunos aos poetas do “mal do século”. Os alunos devem inferir que nesse período havia uma tendência para a tristeza, a angústia e o tédio da vida. Uma das possíveis leituras poderá ser sobre a importância da atitude do professor em relação aos alunos, qual a influência do exemplo , do caráter e da amizade de um professor para os alunos. Certamente os comentários serão variados, dentre eles de que o aprendiz terá mais interesse por aquilo que lhe diz alguma coisa, que lhe traz proveito pessoal e que o engrandece como ser humano. Outro ponto que poderá ser explorado é a necessidade que o jovem tem de liberdade, de auto-afirmação, como também o despreparo de muitos pais e professores a respeito dos anseios de seus filhos ou alunos.
Nesse momento, a turma já deve estar em perfeita sintonia com a prática interativa, uma vez que trocam idéias e argumentos, e, segundo Richter (2000), a qualidade e a quantidade de “input” endereçado ao aluno permite uma freqüência de interações entre professor-aluno e aluno-aluno. Essa etapa exige um pouco mais de conhecimento, mas também faz parte do horizonte de expectativas do aluno, porque está dentro do seu conhecimento de mundo.
Dando seqüência, e para aproximarmos os alunos da proposta do método, deve-se escolher um texto literário. Estamos chegando na etapa da “ruptura do horizonte de expectativas” dos alunos. Optamos por um conto: “Conto de Escola “de Machado de Assis da estética Realista. Agora a turma irá encontrar um linguagem mais requintada que foge, muitas vezes, do seu conhecimento. Caberá ao professor exercitar o bom senso e tornar a linguagem mais adequada aos alunos. Surgirão também novidades quanto aos assuntos tratados, como exemplo, a corrupção e a delação no meio estudantil da época. Uma leitura que deverá aparecer é a tentativa de compra de trabalhos para superar as deficiências, o medo de não saber, o castigo e a humilhação . Nessa etapa, é provável que sejam lembradas atitudes em sala de aula como a honestidade e o respeito entre professor e alunos. Nesse momento, seria interessante o professor interagir, fazendo observações e comparações com a corrupção no Congresso Nacional e com as CPIs que aconteceram ou deveriam acontecer no cenário nacional.
Nessa fase, a abordagem interacionista está perfeita, pois
“O professor não está simplemente preocupado em desinibir o aluno, encorajá-lo a falar e controlar o que ele diz e entende...ao mesmo tempo em que mantém uma boa dose de empatia no diálogo, procura torná-lo sensível ao contexto e o mais próximo possívelda autenticidade, isto é, articulando sentimentos, reflexões e ação a tarefas concretas” (Richter,2000:79)
Com esse tipo de atividade, concomitante será trabalhada a interação social e o desenvolvimento cognitivo, também defendidos por Vygotsky.
Finalmente, deverá ser solicitada a leitura de um romance, que é a proposta final do nosso trabalho. Chegamos à etapa do “questionamento do horizonte de expectativas dos alunos” . O professor deverá oferecer uma leitura que traga muitos estranhamentos, mas deve fazer com que os alunos a leiam como se fosse algo de fácil leitura e que lhe proporciona prazer e não obrigação. Sugerimos o livro “O Ateneu” de Raul Pompéia. Analisando-se o contexto histórico e político da época, deve-se verificar as condições que deram sustentação ao romance. Deve-se observar a linguagem, o grau de informatividade e o meio social, entre outros aspectos que serão mencionados pelos alunos ou pelo professor. Nessa fase, certamente haverá um “questionamento do horizonte de expectativas dos alunos”, pois o grau de informações é grande. Pelas datas e citações do livro, virão à tona informações como a época da Princesa Isabel, da Lei Áurea e da passagem da monarquia para a república, por exemplo. As leituras também deverão questionar sobre a intransigência de certos professores e diretores de escola, na figura do professor e diretor Aristarco, que também simboliza o absolutismo da época. Possivelmente sejam identificadas características de tipos de alunos: quietos, barulhentos, briguentos, entre outros.
Nesse momento, é chegada a hora de os alunos compararem os textos, analisarem suas semelhanças e diferenças, refletirem e questionarem sobre o tema apresentado. É a etapa final: “a ampliação do horizonte de expectativas” . Aí está o papel fundamental do método da recepção e da abordagem interacionista: fazer o aluno gostar e participar ativamente da aula, focalizando-o como sujeito e não como objeto do ato de aprender. Dessa forma, além de interagir com os alunos e contextualizar as aulas, fica evidente que o professor precisa observar todos os fenômenos que acontecem na sala de aula e avaliar todas as possibilidades de manifestação dos alunos.
Concebida e concebendo-se a leitura como prática interativa e social, pretende-se utilizar esse instrumento para apoiar a reflexão coletiva de professores e alunos. Por outro lado, se a vida política, social e cultural se manifesta nos educadores, a cada momento e em cada um de nossos atos, é preciso tornar concreta uma postura pedagógica centrada no aluno e despertá-lo para ser sujeito da história, constituído de linguagem, dono do seu saber e capaz de interagir com o mundo e proporcionar mudanças.
4.Considerações Finais
Com o estudo em questão fica aprovada uma estreita relação entre a proposta interacionista defendida por Luria , Vygotsky e Richter, com o processo do método recepcional de leitura discutido por Bordini e Aguiar. Parece não haver contradições, uma vez que todos esses autores procuram amenizar situações de distanciamento entre o professor o aluno e a sala de aula. Fica claro que essa forma de trabalho almeja promover e sustentar um ambiente de ensino-aprendizagem baseado na troca de experiências. Nota-se que isso acontece através de transação entre os textos e os leitores, pois todos os conhecimentos são colocados em jogo. Portanto, toda leitura deve ser vista dentro de um contexto pessoal, social, histórico, político e cultural. Assim, o leitor traz as suas experiências mas também as circunstâncias socialmente moldadas, e os propósitos da leitura dão a contextualização para a compreensão final. Na realidade, há um redimensionamento do modelo recepcional de leitura que vê no texto o entrelaçamento de idéias que uma concepção plena de leitura exige. Além disso, no ensino interacionista, fica evidente que o leitor dá um salto do sensorial para o racional. Aquilo que o torna dinâmico e vivo, também o torna um instrumento não só de reflexão, mas de refração da realidade.
Sem dúvida, é com uma concepção de homem, sociedade e linguagem concretos que o pensamento de Richter, Vygotsky, Luria, Freire, Bordini e Aguiar se encontram. É a partir do momento em que o homem reflete criticamente sobre sua realidade e confronta-se com ela, que ele constrói a si mesmo e chega a ser dono de sua própria aprendizagem.
Bibliografia:
BORDINI, Maria da Glória, AGUIAR, Vera Teixeira de. Literatura: a formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 4 ed. São Paulo: Cortez,1983.
LURIA, Alexander R. Desenvolvimento cognitivo: seus fundamentos culturais e sociais. São Paulo: Ícone, 1990.
RICHTER, Marcos Gustavo. Ensino de português e interatividade. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2000.
VYGOTSKY, Lev S., LURIA, Alexander R., LEONTIEV, Alexis N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone, 1992.
VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fortes, 1994.
WIDDOWSON. Henry G. O ensino de línguas para a comunicação. Campinas: Pontes, 1991.
http://www.ufsm.br/lec/02_00/Dioni-L&C4.htm